segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Distribuir a sobra não é Caridade.

     Dedicar ao outro o que nos sobra não é caridade e sim dispensa de lixo, buscamos trocar o inútil por um novo consumo, precisamos abrir espaço tanto físico no nosso entorno como psíquico na nossa alma, aliviando a culpa e assim curtir os encantos do nosso privilégio, caridade sempre foi partir com o outro o pão que comemos tanto físico como espiritual, sempre foi bondade, sempre foi considerar o outro como igual.

     Sou favorável sempre ao trabalho coletivo de resistência ao poder, apontando para o aumento da consciência sustentável universal, contra os gestos individuais de esmola que se traduzem por sua inutilidade, para o receptor é um ato de humilhação, de desvio na busca do caminho de obter uma sociedade justa, para o doador uma manifestação de superioridade e por isso mesmo um ato de discriminação.

     Alguns locais no mundo estão trabalhando o conceito de renda mínima para toda a população, independente de contrapartida, você recebe sendo rico ou pobre, estando trabalhando ou desempregado, vejo com bons olhos esse movimento, me parece justo que todos recebam sua parcela do trabalho global, ressalvando que deva ser um direito universal de qualquer ser humano e não somente de pequenas parcelas da humanidade que vivem em países com alto grau de desenvolvimento, só o que se gasta com a gestão de complicados sistemas de providência seria suficiente para dar essa garantia de viver bem a todos.

     Fatos lamentáveis como esses caminham com meia centena de imigrantes ilegais mortos encontrados na Europa nesta semana é o resultado desta permanente injustiça cometida pelo homem contra o próprio homem, felizmente temos como contrapartida o aumento de vozes a clamarem no deserto da sociedade de consumo pelo novo paradigma da sustentabilidade. 

     Estamos tratando da controversa distribuição da renda, infelizmente mais e mais concentrada nas mãos de poucos, quanto mais agregamos de tecnologia menos distribuímos renda e esta sempre cai na mão de quem não a suja, mas tem por espírito o salvo conduto de pegar sua parte à custa das mãos sujas de outrem.

     Não estamos falando do simplismo que seria todos ganharem o mesmo, estamos tratando de todos ganharem o mínimo justo para seu alimento, seu abrigo, seu estudo, seu lazer, constituir família e ter participação igualitária na comunidade social, somos devedores para com a humanidade de uma solução para este direito universal.     

sábado, 29 de agosto de 2015

Espaço Partido

     No entorno as mariposas enfrentam o fogo da vela, há uma atração irresistível pelo fogo e calor tal qual a nossa Terra é atraída pelo Sol, o movimento gera o afastamento, a massa física a atração, essa é uma explicação simples do eterno girar, vamos admitir não tão eterno assim, um dia perderemos a força e cairemos no sol ou quem sabe ele enfraquece e escapulimos pelo universo, todas as relações inclusive conosco mesmo são compostas de atração e repulsa.

     Como indivíduos estamos atentos ao espaço que julgamos estratégico para nossa sobrevivência, os nossos sentidos funcionam como radares especializados sinalizando quando a distancia aceitável é transposta, este é o momento que o coração bate mais forte, disparando, aumenta a precisão de todos os sentidos com nossas capacidades mentais processando essas entradas de sensações e de imediato formulam hipóteses e reações com base a todo um histórico anteriormente vivido.

     Podemos reagir com violência, quem sabe com curiosidade, talvez de coração aberto com bondade, vamos tomar uma ação conforme o termômetro de intensidade de vida, cuja menor medida é a morte, corresponde a um particular momento nosso, alguns vão me dizer que isso é bom, outros vão me dizer que isso é mau, reagir é apenas ser nada tendo a ver com bom ou mau.

     Globalizado o mundo sinaliza que passou o tempo em que podíamos ficar imunes, hoje e cada vez mais será nosso lugar invadido, a ponto de não ser mais nosso, quase podemos dizer que somos invasores do que antes era nosso e agora é de muitos, o espaço partido se apresenta como nossa integridade comprometida.

     Podemos fazer de conta em uma simplória racionalização que não é nada conosco, podemos nos enganar e orgulhosos nos considerarmos o invasor, como se possível fosse não considerar a existência do outro, podemos ainda curtir as curiosas sensações que desperta a consciência da ambiguidade das situações invadido/invasor.

     Nossas entranhas estão abertas, escancaradas à vista de todos, e nossa única defesa é o sabermos acrescendo a essa informação o fato de que por mais que nos pareçam diferentes todos vivem situação semelhante.


     Este espaço partido exige que saibamos sempre o que nos traz cada um dos nossos sócios secretos, para em igualdade compartilharmos cada um de seus pedaços harmonizando-os como um todo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Nos Subterrâneos da Europa

     Oferecida carona, oportunidade aproveitada, de carro até muito próximo à Amsterdam, bonito o interior da Holanda, foi nessa viagem trinta anos atrás que me dei conta como as coisas já funcionavam bem no velho continente, meu amigo simplesmente pegou a rota, incluindo vários países França, Bélgica, Holanda, programou o pedágio como um todo e não paramos em lugar nenhum, andávamos como se fronteiras não houvesse, no banco do carona detive-me a contemplar a organização das cidades e dos campos por quais transitávamos.

    Chegando à capital da Holanda, hospedei-me em um hotel simples, limpo e agradável adequado ao pouco dinheiro que possuía, sempre viajava usando as sobras das diárias, e isso era suficiente para estes momentos de lazer, a Europa tem como principal característica o respeito à relação prestador e receptor de serviços, em todos os lugares, talvez um pouco menos na Itália onde algumas tentativas de tirar vantagem do fato de ser turista me surpreenderam, mas nesse país em específico tem que contar o sangue latino e a crise econômica vivida pelo país na época, nunca esquecendo que a beleza incomparável de suas cidades, Roma, Veneza, entre outras quase tudo justifica.

     Por um lado me deliciava com o respeito às liberdades individuais na Holanda, a abertura para aceitar as necessidades de cada um, abrindo-se espaços para os cafés dos curtidores de maconha, para as vitrines onde se expunha a prostituição, por outro me desloquei por seus canais maravilhosos, andei em seus museus, percorri suas ruas e as belas e preservadas construções carregadas de histórias, convivi com pessoas agradáveis e hospitaleiras, essa cidade é a maior dos países baixos e realmente te traz a sensação de valer a pena viver em tal lugar.

     Porém não estou relatando essa viagem pelo óbvio e sim pelo inusitado de ser surpreendido por uma greve internacional de trem, chegando à estação para adquirir a passagem de volta, tinha que estar de volta no início da tarde de segunda, não havia trem, nem previsão de quando o teria, iniciou-se então a aventura: como voltar? Na rua principal encontrei por cinquenta dólares uma passagem para Paris de “magic bus”. 

     Só consegui me tranquilizar ao chegar ao outro dia fim da manhã na Gare Du Nord, na saída ao chegar à estação do Metrô, era noite no local do embarque, retirado da cidade não havia nada nem ninguém, aos poucos começaram a aparecer algumas pessoas, por fim apareceu o tal ônibus, literalmente nos jogaram dentro do mesmo, não se pediu documento só o ticket, o motorista mal educado, autoritário exigiu silêncio sob o risco de parar e mandar descer todo mundo, só parou na Bélgica para translado de ônibus, questão de autorização de trânsito, estava nos subterrâneos da Europa, transporte clandestino e imaginei que esse tipo de caminho poderia muito bem ser utilizado pelos terroristas que na época por lá andavam.  

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Mas que Ela se Move se Move!

     Frente a frente com alta hierarquia da Inquisição, Galileu Galilei, com mais de setenta anos de idade, negando toda a sua teoria, o fazia em nome da fé, por imposição desta a terra não mais girava em torno do sol, como se não bastasse isso, obrigado, jurava que qualquer pessoa que acreditasse na teoria que ele propôs, sendo do seu conhecimento a denunciaria à Santa Inquisição. Essa cena é apresentada no documentário De L’Argentine (1986), do diretor do cinema novo alemão Werner Schroeter, imagem do terror, do poder, da força da tortura e da insensatez humana.

     Escolheu a Argentina, como poderia ter escolhido o Chile ou o Brasil na América Latina da época, talvez pelo retumbante clamor das mães da praça de maio com a força do seu slogan "tem que pagar", o terrorismo de estado apresentou-se nestes países com uma violência incomum, nem crianças, filhas de opositores, ficaram a salvo, o diretor alemão traz no filme uma denúncia qualificada, muito forte, expandida para outras situações totalitárias no mundo, mexe muito conosco, mesmo agora quase trinta anos após sua estreia, e fica a pergunta: Como podemos conviver com essas situações sem nos sentirmos extremamente diminuídos?

     Não se resumiu o documentário à questão da ditadura, o diretor chamou para o filme os temas da opressão sexual, dos continuados governos apoiadores da exploração do homem pelo homem, da eterna injustiça da pobreza, buscando trabalhar e ampliar o tema do abuso de poder, imagem da qual a Inquisição apresenta-se como modelo a ser seguido, assim o fazem os esquemas totalitários que deságuam sempre na tortura e na delação da qual a mesma foi pós-graduada.

     A afirmação de necessidade e urgência em buscar os culpados e julgá-los legalmente é um dos pontos altos da película, transparece na afirmação de que os vivos foram coniventes, incluídos neste rol a igreja, os políticos e a imprensa, no seu contraponto afirma a ideia de que quem denunciou morreu torturado, assassinado, o que nos provoca a refletir o como prepararmo-nos para eventos futuros de tamanha infelicidade tanto no sentido de previamente evitá-los como caso ocorra de enfrentá-los.


    Talvez o murmúrio final, que faz parte da lenda, e nos parece impraticável de ser dito por Galilei na época de caça as bruxas, "Mas que Ela se Move se Move!", aponte o caminho da resistência reforçando a posição estratégica de acreditar sempre e divulgar dentro do possível esta verdade entre seus pares de pensamento, não precisamos de mártires e sim de consciência coletiva.

domingo, 23 de agosto de 2015

Rabugento

     Palavra clássica esta, rabugento, sim define pessoa chata, ou ainda emburrada ou se quiserem fora do contexto, percebo que seu significado aplica-se a mim junto a alguns que me leem, são como sombras impressas nas paredes do espírito destes, gostam da imagem original que eles compartilham e rejeitam o ecoar do mesmo pensamento nas diferentes linhas por mim escritas, se falo sombra o digo pela imperfeição da imagem que ela representa, repetindo-me apenas manifesto minha completa inconformidade com este simulacro de democracia que é o atual totalitarismo de consumo e não me sinto autorizado, apesar de justificar assim a qualificação, a abandonar a resistência.

     A origem conhecem todos, assim como um pintor faz sua obra sobrepondo porções de tinta até se expor por inteiro criando uma ficção, o ser humano racional que é, foi depositando camada a camada as razões lógicas para justificação do poder, sempre encontra um arrazoado de justificativas para a força e a coragem de exercer domínio sobre outrem, ou seria fraqueza e covardia em se expor à convivência em igualdade, nos sentimos capazes de definir o que é bom para o outro e assim nos tornamos onipotentes, injustos e discriminadores.

     Não que queira ser o Joãozinho do passo certo, até por não crer que exista um bom caminho para o outro, cada rota é individual adequada a tão somente um caminhante, o que a pensou, o que a planejou, o que a escolheu, as diversas rotas se cruzam claro que sim e como são boas essas intersecções, pois trazem o prazer que justifica plenamente o construir-se de cada um, não basta buscar a liberdade é preciso se mostrar como alguém que a busca.     

     Tenho uma grande fé na tomada individual de decisão, pois aí se encontra a redenção do homem, sempre que ele opta com autonomia o faz para o bem-estar seu, dos seres vivos e da natureza, livre do medo que o leva a atacar ou defender, ciente da independente unicidade que o livra de mútuas agressões, exatamente por isso me obrigo a repetir-me no evangelizar a desconstrução da carga civilizatória que carregamos tal qual um pecado original.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

No Canto do Encanto

     O trem andava solto entre Paris e Copenhagen, década de oitenta, século passado, eu era um sul-americano na cabine contemplando o barulho continuado do mover-se sobre os trilhos, o destino era virgem em seus encantos e percalços para mim o passageiro, minha primeira aventura em um país nórdico, a esperança que percorria minha imaginação em curtir bons momentos estava em minhas origens europeias, descendente de migrantes da Prússia antiga e do império Austro-Húngaro, bem o sabia excetuando-se meu avô materno que tinha vindo da região das minas de carvão na Alemanha, em relação aos tataravôs seria muito mais difícil de conseguir os rastros corretos e hoje localizá-los no mapa.

     Ao entrar na Alemanha surpreendeu-me inicialmente o forte aparato militar que invadiu o trem, em busca dos nossos documentos devidamente armados os encarregados da fronteira percorrendo o trem a validarem nossa entrada na Alemanha com uma severidade que ainda não tinha visto em outros países europeus, claro em reflexões posteriores dei-me conta do que ocorria, estávamos vivendo as questões do terrorismo, o grande temor europeu na época em que se manifestou forte na Alemanha e Itália principalmente.      

     Tinha feito uma parada em Colônia (Köln) na Alemanha, era uma sexta fim de tarde pela primeira vez vi um fenômeno que nos tempos atuais são mais comuns, caminhando na região do porto passou por mim um verdadeiro vendaval de pessoas, movimentando-se em todas as direções e isso aconteceu em quinze minutos, enquanto tentava entender o que estava acontecendo me dei conta de que não tinha mais ninguém nas ruas, apenas uns poucos perdidos dentro de bares e os carros de polícia andando sobre os calçadões, era o êxodo para sair da cidade em busca de um fim de semana, vi depois filas enormes de veículos nas estradas afastando-se da cidade.

     Muito surpreso fiquei de não encontrá-la novamente em Copenhagen, não me deixou nenhuma pista nenhuma dica me abandonou simplesmente, estudante de medicina tinha entrado na minha cabine de trem, éramos os dois apenas, ela puxou da mochila uma garrafa de vinho francês e buscamos uma mistura de línguas o francês, inglês e portunhol como suporte de todo o resto que eram apenas manifestações físicas completando-se em carinhos por ambos ali desejados e ali vividos, valeu apenas por uma viagem França-Dinamarca, ao chegar não deixou dúvidas tinha alguém e o que vivemos foi bom e era o que tinha que ser, minha índole de prender-me emocionalmente com quem viva fisicamente não estava dentro dos preceitos dela, para ela era apenas um momento em uma viagem completo por si só.   

     Não tenho nada a tirar da experiência de viver aquela cidade, povo muito alegre circulando pelas ruas e praças suas cervejas, amizades e amores em um clima de festa muito grande, realmente o fato correspondeu ao que imaginara me senti como um nativo perfeitamente adaptado ao clima das pessoas locais, assim mantenho ”No Canto” da memória marcas “do Encanto” de lá ter estado até hoje.  

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Cinema e os Dias

     A tarde troca seu existir pelo nascer da noite, o cinema é oportunizado a mim na magia deste momento, filmes são uma de minhas paixões, procuro uma das salas de tela grande da minha cidade, encontro uma poltrona livre nos espaços culturais ou numerada ao meu gosto nos comerciais, sempre em fila central próxima à tela, feito! Apaga a luz e o filme me envolve por inteiro, algumas vezes com o bônus de um debate, conto-lhes que nos últimos dias vi tipos diferenciados de cinema, vejam:

     Terminei a semana com um filme nosso aqui do sul seguido no sábado pelo último de Godard ao qual dediquei um blog específico, quero comentar o da sexta o “Dromedário no Asfalto”, dirigido por Gilson Vargas, sim bom filme, um Road Movie entre o nosso querido Rio Grande do Sul e o hospitaleiro Uruguai, lugares que gosto onde me sinto muito bem e transito com frequência, o diretor encontrou um ator, Marcos Contreras, que encaixou muito bem no roteiro, em movimento amadurece com sucessivos encontros pessoais que o preparam para o objetivo final, o encontro inédito do pai, após a exibição o debate com a simpatia do Marcos sempre presente e as colocações do Gilson esclarecedoras.

     Início de semana, cinema brasileiro, na terça fui ver Real Beleza, de Jorge Furtado e na quarta o filme Educação Sentimental do Júlio Bressane, qualidade de fotografia de alto nível com as verdadeiras obras de arte que são as paisagens do interior do Rio Grande do Sul no primeiro e do Rio de Janeiro no segundo, propostas muito diferentes de cinema com certeza.

     No caso do Real Beleza temos um enredo politicamente correto, água com açúcar onde as transgressões são mediadas entre os principais protagonistas via acordos que me deixaram a sensação de serem impraticáveis, destinado a angariar a simpatia do público padrão Globo, sempre bem comportado, em lugar de gerar um questionamento sério sobre família, paixão, amor e gratidão, o filme foi bem feito nos absorve em sua sequência de cenas, mas penso que tropeça num irreal bom caráter dos personagens nos passando uma mensagem de um caminho para resolver as angústias pessoais construídos com o acomodar situações.

     Já Educação Sentimental nos mostra a mulher força, perfeição em torno da qual tudo gira, revelando-se como sinônimo da natureza, bela, sensível, fecunda, culta, não deixando espaço para mais nada, ela é o próprio todo, a protagonista na metáfora da lua apaixonada por um rapaz adormecido é o feminino em relação ao sol simultaneamente masculino para com a Terra, ou seja, suficiente por si só, como legado o filme nos deixa enormes espaços para questionarmo-nos a concepção de mulher que cultivamos internamente. 


     Na sequência vi Vertigo de Hitchcock, que pretendo dedicar-lhe algumas linhas em outro blog e a noite este ótimo “O Pagamento Final” dirigido por Brian de Palma de 1993, nosso herói no filme tem a vitória final, da maneira que pessoalmente julgo a mais preciosa: o poder de realizar o sonho de se regenerar, abandonando o mundo marginal pelo único caminho que lhe sobrou ao morrer, via seu filho ainda na barriga da mãe.   

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Imagem Corta na Carne é Godard.

     Sol escaldante em pleno meio-dia de inverno gaúcho, quem diria hein, a caminho do cinema para ver “Adeus à Linguagem” obra de 2014 de Jean-Luc Godard, sendo seu primeiro filme longa metragem em 3D, o absurdo da temperatura já sinalizava o que me esperava. Como sempre, Godard é pensamento puro, é cinema cerebral e crítico.

     Sentado em plena plateia do espetáculo em grande expectativa comecei ganhando um bônus sentimental, sim nos anúncios de filmes a serem exibidos com as sínteses de sempre, um deles foi o pequeno príncipe em 3D, o que me transmutou imediatamente para minha adolescência, em uma pureza irrecuperável onde na peça teatral de mesmo nome, representei o próprio personagem, estas coisas nunca esquecemos: a nossa flor, o carneiro, a responsabilidade para com quem seduzimos.

     Por fim, estava frente a frente a essa obra do grande mestre agora já na casa dos oitenta e tantos anos, muito lúcido, cada vez mais investigativo, sempre questionador nos colocando não apenas dentro das melhores imagens tridimensionais, mas justapondo com imagens planas e sons que parecem em dimensões diferentes, ver uma vez realmente é insuficiente, seus pensamentos entre citações de Rilke, Monet, Flaubert vai nos atingindo através de imagens que vistas uma só vez aproveitá-las todas torna-se impossível.

     "A ideia é simples: uma mulher casada e um homem solteiro encontram-se. Amam-se, discutem, separam-se. Um cão erra entre a cidade e o campo. As estações passam. O homem e a mulher encontram-se outra vez. O cão entre eles. O outro é um. Um é o outro. São três...”.

     As palavras acima são a descrição simples de Jean-Luc Godard para "Adeus à Linguagem”, palavras muito mais poderosas que a sinopse do filme, essa completamente insuficiente não me parece ter a ver com o mesmo, talvez assim o seja porque só o nome Godard diz muito, me debrucei sobre algumas críticas e também me parece insuficientes, o que é perfeitamente explicável, um filme multifacetado como este pode gerar uma análise a cada um dos minutos de sua existência, logo temos que nos contentar em citar um ou outro detalhe.

     Eu particularmente tenho especial gosto pelas provocações propostas pelo diretor, que são inúmeras, o conceito da vitória do pensamento do derrotado na guerra, referência à vitória do fascismo hoje presente nas democracias totalitárias ganhadoras da guerra, onde seu maior propagador era o nazista e derrotado Hitler, a presença na natureza e no ambiente urbano do cão vivendo a mediação entre o conflito das pessoas carregadas de civilização e assim chamando a desconstrução, a questão da mulher incapaz de fazer o mal, que perturba e que mata e a igualdade reduzida ao espaço único das necessidades vitais.


     Talvez o que mais seduza seja a busca permanente de desconstrução no filme e o aproveitamento dos recursos de 3D nos colocando dentro de uma imagem que corta fundo na carne da gente iluminando o espírito, não temos apenas imagens, são também sons e pensamentos em 3D. Sim, merece ser visto muitas vezes mais.

sábado, 8 de agosto de 2015

Aurora o Eterno Retorno do Olhar

     Os sábados cresceram em importância na minha existência, suas primeiras nove horas repetem-se em uma sequência de passos, similar de semana a semana, a caminhada matinal, a feira orgânica, o café Viena e desde o último mês, o encontro com os amigos do “Aurora Grupo de Estudos de Cinema”, nesse eterno retorno composto de momentos sempre diferenciados onde não há espaço para roteiros não originais.

     Quem me lê já sabe, o início do meu dia é caminhando perto de casa, hora em que escrevo na memória minhas postagens, esta obra-prima que é o processador orgânico que todos temos, permite-nos a façanha de simultaneamente escrever vários como se vivêssemos várias vidas em um mesmo tempo, um processo que não me atrevo a explicar por pura ignorância, sei que acontece comigo, um pequeno ponto vai tomando contornos diferentes e transforma-se em um assunto, que termina como um conteúdo pronto a ser trabalhado quando tiver ao meu alcance papel ou um teclado.

     Sempre tenho também o momento café Viena, lá na Felipe Camarão quase Osvaldo onde fizemos a troca de bastão enquanto a Daniela e eu voltamos da feira ecológica do Bom Fim o Nataniel inicia a sua passagem pela mesma, é o momento de curtirmos nossas interpretações dos acontecimentos, nossos pensamentos sobre a humanidade, coisas de pai e filhos buscando harmonia e luz em torno de uma mesa aconchegante e um café expresso delicioso.

     O clímax é o nosso momento Hitchcock, para não faltar com a verdade momento Dr. Oliveira Jr. e sua tese de doutorado, “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno”, obra na qual nosso grupo heterogêneo se debruça para analisar, o ritual é simples durante a semana a leitura de uma parte escolhida do texto e nos sábados é revelado o que enxergaram os vários olhos comandados por históricos de experiências muito diferenciadas, abre-se a controvérsia na busca de algumas linhas de convergência, sem nunca deixar de ver a cada sessão um dos muitos filmes de outros autores que revisitam a obra do mestre conforme a tese de doutorado nos sinaliza.


     O amor explícito pelo cinema, o perfil de contínuos pesquisadores, o qualificado e crescente conhecimento na área do audiovisual, os talentos diferenciados que adicionam valor a comunidade da arte por serem complementares, são as benesses que o pessoal do grupo de estudos traz para meu avanço pessoal, ganho muito e contribuo com o pouco que posso dar que se resume apenas a gostar de cinema e de pensar.     

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Impasse

     Tem repetido-se cada dia encontrarmo-nos com alguma referência nas redes sociais e na mídia sobre mudança do sistema nos seus três pilares, político, econômico e social, sim a construção de uma nova sociedade está em gestação nas entranhas do neocapitalismo, inteligências humanas cada vez em maior número vem questionando o momento atual das democracias totalitárias mantidas por uma oligarquia globalizada, o impasse está estabelecido entre a sociedade de consumo e a de bem-estar.

     Descobrimos cada vez mais indícios de que um conjunto de poucos homens distribuídos no planeta controla toda a riqueza mundial, também a mídia e especialmente os processos políticos através de seus agentes, por certo não estão interessados em abrir mão do poder que detêm, é um processo do qual somos vitimados e que ao mesmo se contrapõe dia a dia maior número de consciências desejosas de se libertarem. 

     Quem ainda não viu ou sofreu o estranho ritual de um grupo formando um círculo de manhã, iniciando o dia aos gritos de palavras de ordem, até aí nada de mais já vimos isso em alguns filmes onde índios assim preparavam-se para uma batalha, o surpreendente é que essa guerra é contra nós os consumidores, com o objetivo de empurrar-nos o máximo de quinquilharias possíveis.

     Mais estranho ainda é o perfil das pessoas que são usadas para mobilizar e treinar os condutores desses rituais, sempre de especialistas em comando e controle, como os militares ou os treinadores de futebol, já vi chefes de cozinha assim como humoristas executando este papel, na verdade é completamente indiferente, não interessa nem conhecerem o objetivo da organização, o que interessa é preparar para atacar o indefeso cliente previamente exposto pela propaganda a inúmeros desejos de consumo.

    A sociedade do desperdício funciona assim mesmo, montando operações de guerra para não deixar o cliente sair sem consumir, todo o foco é dado no trabalho, colocando-o como valor por si mesmo, nos especializamos em produzir excedentes de preferência descartáveis e conduzir as pessoas eternamente insatisfeitas com o último desejo realizado por sua prévia obsolescência, em síntese somos produtores de lixo.


     Apesar de não o saberem e mortas por isso, a maioria das organizações foca em fazer trabalhar seres humanos, quando deveriam jogar todas as fichas em trazer bem-estar ao indivíduo, a sociedade e a natureza que são as características do mundo que está por vir, quando? Não o sabemos, uma troca de paradigma não tem o tempo para acontecer definido, a verdade é que é uma revolução que está em andamento e chegará neste objetivo com o aumento da consciência sustentável global.   

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Meus privilégios tem assinatura de meus pais

     Saio de uma margem do rio por sobre troncos levados pela correnteza, um a um vou montando o roteiro das minhas escolhas, eles são disjuntos, eles fogem, eles aparecem e se escondem, reaparecem, cada tronco navegante é uma opção de dar um passo à frente, uma oportunidade de avançar para o outro lado, repentinamente um pé na areia e me percebo por inteiro na outra beira, ao chegar um inventário rápido, me pergunto o que tenho comigo, a resposta é nada absolutamente nada, chego com tudo que tinha quando saí isto é coisa nenhuma.

     De que privilégios nos fala, é o ruído em forma de pergunta que zumbe em meus ouvidos, minha resposta é imediata, falo da regalia da travessia, do direito de estar aqui deste lado agora, de ter o entendimento da importância do desapego à posse, do vazio de coisas repleto de momentos vividos, da alma leve de quem se sente inteiro e em nada desfalcado de satisfação pessoal.

     Se hoje os dois, mãe e pai me faltam fisicamente, a presença de ambos em tudo que sou é imanente, sou um traço real de uma carta por eles assinada, sou o texto escrito resultado de suas vidas, não por me apontarem caminhos sim por aprender ao seu lado observando-os experimentar a vida juntos, não por virtuose sim por humanidade, não por perfeição sim por seus erros e vontade de acertar, não por me mimarem sim por me amarem.

     Se estiver imaginando que minhas pegadas sobrepõem as deles, lamento decepcioná-lo a maior riqueza que a mim deram foi aprender a nada aceitar como pronto, acabado, conhecido e sim como pensamento a ser questionado, eles conviveram com minha rebeldia contrapondo-a com carinho paciente, o que me permitiu andar com minhas próprias pernas, sem muletas, sem perna de pau apenas carne e osso sob a batuta do pensar.

     No teatro da vida agora com quatro filhos exerço o outro papel, o que representa a duplicação do ganho, pois se soma ao já recebido dos meus pais o que colho no dia a dia com os filhos, minha alegria está na liberdade pessoal presente em cada um e no seu senso de justiça, confesso me seduz a ideia de que tem um pouco a ver com minha não interferência e o olhar deles por esta minha permanente busca, que mais eu poderia desejar do que ter filhos justos e livres.


     Só saiu este texto porque ontem equivocadamente confundi o domingo normal com o comercial Dia dos Pais, afinal de pai e de mãe o são todos os dias, acertei o dia, escrever sobre alegria não tem data.                

domingo, 2 de agosto de 2015

Prazer Anárquico da Desconstrução

     Sair para o dia sem definir quaisquer metas é dar chance ao prazer, alguns podem considerar essa minha afirmação uma insensatez, eu os entendo percebo que apenas não param para pensar no tema, afinal estamos no momento da sociedade onde só existem objetivos maravilhosos, metas a alcançar, é um mundo com um diário programar desejos de virada de ano, todos os dias temos que nos prometer alguma coisa nem que seja a reedição da promessa do dia anterior.

     Coloca-te no meu lugar, sempre temos uma linha de procedimentos a seguir é da vida, temos que acordar e buscar o movimento exigido pelo corpo, o mesmo exige alimento, não muito, o mínimo para garantir sua manutenção, impõe–se socialmente engajar-nos em um ganha-pão qualquer, o velho tema de casa “das responsabilidades”, tenho em mim o medo de não entender onde nessa cadeia fica o prazer, sim a alegria das nossas leituras, das nossas músicas, das nossas companhias, dos nossos filmes, enfim não tenho nenhuma vontade de engessar-me nesta lista de quesitos definidos como obrigação social, moral, ética seja lá que obrigação for meu compromisso é com a felicidade.

    Está bem eu entendo alguém que siga escravizado a essa agenda, alarmes o chamando no celular, momento após momento coordenando cada um dos seus passos, este cara planejou estruturou uma cópia repetitiva de compromissos assumidos com quem ele não sabe bem, ninguém sabe, alguma entidade abstrata, não nos exercitamos o questionar, pois não é politicamente correto fazê-lo, minha dificuldade está em entender que não exista prazer e que se possa viver sem tê-lo.

     O bem-estar exige disponibilidade não planejamento, exige atenção não procura, exige alerta para os pequenos sinais que transitam nos 360 graus do nosso entorno, e principalmente exige a decisão não viciada a cada momento, uma opção clara pelo desmonte, por abandonar a carga pesada do passado de intervenções indevidas de muitos mil anos de ingerência na liberdade de “SER”, jogar fora esta mochila repleta de regras subconscientes que nos tiram a vitalidade que necessitamos para viver a anarquia que é o prazer.

     A única regra possível e aceitável a restringir o compromisso com nossa qualidade de vida é nossas decisões estarem alinhadas à sustentabilidade global, nosso prazer deve reproduzir bem-estar na natureza em seu todo e nunca estar direcionado às ilusões do desperdício, essência do consumo que nos escraviza.