terça-feira, 31 de março de 2015

Era Ele Sim!

     Você me pede testemunha, não lhe posso dar sou eu a minha única testemunha, de qualquer maneira não lhe serviria isso te afirmo em definitivo, testemunha mesmo que seja eu próprio, é uma impossibilidade absoluta, não tem como existir a não ser como a falsificação da verdade traindo completamente o sentido que normalmente assinalamos de comprová-la, não se pode com certeza afirmar uma verdade, pois a veracidade é invisível aos nossos olhos, sempre a descrevemos de maneiras diferentes utilizando nossos pessoalíssimos filtros, se faço um paralelo do conceito com o mesmo livro lido cinco vezes que são na verdade cinco livros, o mesmo só existe no momento específico de sua degustação pelo espírito do leitor.

     Mas minha certeza é completa era ele sim, mesmo transmutado em corpos diferentes, deparo-me com ele em diferentes situações e mascaradas, porém, apesar dos disfarces o sei, percebo a indiferença que ele assume em meu espírito, fato é o vazio de valor que sua presença me adiciona, talvez estejas certo ao me dizer que ele inexiste e seja apenas fruto da minha imaginação, estais certo sim se penso que como corpo ele é uma alma inexistente.

     Posso sim identificá-lo em uma reunião social, ou em um compromisso de trabalho, pode ser em uma solenidade religiosa, tão somente o identifico pelo vazio que se mostra a mim, vejo-o sempre com seus ardis mesquinhos, muito fáceis de decifrar, são armados pela falta de identidade como gente, por uma busca egoísta de ilusórios ganhos frente a outrem, vantagens essas que tanto eu como ele sabemos que se define por sua inverdade.

     Por que ele existe? Por que muda tanto de humor? Por que tem aparências tão diversas? Questionando-me tentas encontrar um ponto falho no meu raciocínio, buscando ficas com insistência por respostas que não o podem identificar, também me desentendo quanto ao porquê de me dedicar a lhe mostrar sua existência, se não consigo ver em nenhum momento sua vontade de conhecer, não serão argumentos e relatos meus que o farão vê-lo.


     Talvez seja melhor assim mesmo, possivelmente nada irás ganhar ao conhecer o anti-homem que se me apresenta por trás de todos esses disfarces, sei que não posso deixar de identificá-lo, apesar de me ser indiferente sua existência é precisamente por essa indiferença que o identifico e sinto que é muito difícil viver em contato com pessoas indiferentes, sim ele é fruto da submissão e inexiste por ser marionete na mão do poder coletivo.  

sexta-feira, 27 de março de 2015

A Morte como realização da Vida

     Nosso escritor e poeta nascido em Praga no Império Austro-Húngaro, hoje República Tcheca, Rainer Maria Rilke, em um de seus livros foi quem melhor me descreveu sua excelência a morte ao defini-la como pessoal e intransferível, em outras palavras dizendo que cada um tem a morte correspondente a sua pessoa, exemplificava via a morte de um tio poderoso que envolveu por vários dias toda a comunidade que dependia dele através de manifestações e ruídos gigantescos que deixavam toda a vila insone.

     Quando moleque por sorte mais desencontros com a mesma, movia-me em direção a sua companhia com frequência, mas o máximo que conseguia e por diversas vezes foi um conjunto de ossos quebrados, coisas da idade que se manifesta pela irreflexão e traquinagem e por sorte minha foi marcado por desencontros, depois amadurecido sempre que se possa admitir que um homem do sexo masculino possa amadurecer, fui me encontrando com essa figura tétrica quando manifestava sua presença indesejada junto a pessoas de quem gostava.

     Certo, me rendo sou obrigado a admitir, sempre passou por mim rápida quase não percebida por certo por vontade minha e não dela afetavam-me as causas e o buraco branco da ausência das pessoas queridas muito mais do que o próprio ato de morrer, porém nos últimos tempos a partir do final do ano passado começou a andar de braços dados no dia a dia comigo, na miscigenação de sua imagem com a da minha mãe a ponto de confundirem-se com uma só pessoa, ora via minha mãe ora via a morte.

     Sou de não olhar para trás, nunca dei muita bola para o após, não sou frequentador de velórios, enterros e cemitérios, são eventos que não me dizem praticamente nada, mas sim frequento a vida e suas explicações, e foi assim que vivi o perder minha filha, sim a perdi recém-nascida por dificuldades respiratórias, nunca pude aceitar, não a morte e sim a negligência a falta de aparelhagem que a pudesse salvar, e a enterrei e página virada, o que vale é quem ficou.


     Claro já perdi amigos, claro já perdi parentes e em quase todos os casos convicto fiquei de que era o momento em que o desejavam, também quero morrer quando o desejar, sem barganhar migalhas de vida de má qualidade, apenas viver com forças próprias minhas, desejo eu próprio embalar-me ou então ser jogado inerte no colo da morte é o que realmente vai realizar-me, e a quero do meu tamanho, com alegria retornar ao pó do qual um dia nasci e tendo a minha morte como celebração da vida.

quinta-feira, 26 de março de 2015

A Estação do Ano

     Perdi-me nos hemisférios com certeza, acredito que ainda não tinha acordado, estava investigando, no início da manhã quando começaria a primavera, a resposta não tardou há apenas dois dias tinha começado o outono por aqui, esta foi a correta informação que recebi, apenas pude sorrir e me desculpar utilizando o recém acordar como justificativa, esquecido da conversa cheguei a Paris em viagem por imaginação e encontrei as árvores completamente desfolhadas no inverno agora nesta época do ano começando a ficar verdes, com suas folhas avançando por todos os lados em todas as ruas.

     Minutos após esse despertar caminhando em torno do parque Germânia, um dos usuais parceiros de percurso, cujo caminhar na direção invertida ao meu permite os comprimentos na primeira volta e as despedidas na última, não consegui esconder a grande alegria com a chegada do outono, não tive dúvidas e de imediato lhe relatei a confusão feita com a primavera, sugerindo como motivo o desejo de migrar, por tempo limitado, para a cidade luz, contabilizei essa conversa como um indício a mais, o fato de estar na estação do ano errada estava tornando-se recorrente.

     Se me perguntassem por quê? O que de tão importante faria em Paris? Responderia com um sonoro "Nada", o que significa esse nada, apenas andar por Paris sem nenhum objetivo especial, revisitar ruas, bares, cinemas, recantos culturais, até mesmo ser o porto seguro das investidas de trem a tantas cidades belas em países vizinhos como Copenhague, Amsterdam, Colônia, Roma, Veneza, Zurique entre tantas outras, repetindo-me em ir e voltar que sempre acaba bem em Paris.

     Parece que uma teia de acontecimentos organiza-se a apontar para um rememorar de vivências, outras coincidências desde o interesse de minha filha no cinema que em Porto Alegre tem influência francesa muito grande, como o cuidado e talento de meu filho em planejar possibilidades financeiras, até o meu tempo estar despojado de amarras, muito livre para tomar decisões desse tipo, respaldado pelo andar com os próprios pés e bem dos dois pares de filhos.


     Como sempre não acreditando em plano de vida, mas em opção consciente de viver, percebo que os caminhos se iluminam no somatório das pequenas decisões, assim como o trem segue a rota resultante do adequado manejo das bifurcações dos trilhos, eu hoje leio as pistas mais facilmente, conseguindo entender que o local melhor é o do momento e este o será sempre resultante das opções que fiz, e o vejo sinalizando o futuro, em mais ou em menos dias, como um inevitável chegar lá e viver a primavera.       

terça-feira, 24 de março de 2015

O Boato

     A vida acontecendo na repetição circular da normalidade, entre caminhadas, livros, filmes e o trabalho, era um domingo, e enquanto me distraia fumando uma cigarrilha interrompe-me pela manhã um jovem vizinho a questionar-me de supetão – “Será que vai acontecer algo hoje à tarde? como vai ser lá?".

     Surpreendi-me, do que será que ele estava falando, foi por apenas um instante, logo me refiz, porém ele percebeu minha perplexidade e continuou - “Cai a Dilma? Teremos impugnação? Como termina à tarde?", e assim comentava sua insatisfação, expectativas e a vontade de participar das manifestações à tarde.

     Fui recuperando na memória aos poucos as outras surpresas que tive nos quinze dias anteriores a esse encontro, pequenos achados, ocorrências insensatas, desconectadas. Por exemplo, encontrar em um jornal uma notícia de um possível desabastecimento nos supermercados, lembro-me bem e juro que não entendi, tem uma excelente safra à vista e uma superoferta de bens duráveis, meu sentimento é que, ao contrário, quem está correndo atrás de compradores é o comércio.

     Enquanto escutava-o, ele jovem ainda na faixa dos 25 a 35 anos, a falar-me em mudança nos rumos e nos nomes do governo federal, visualizei em pensamento de outra nota na mídia desmentindo uma possível intervenção militar, como assim intervenção militar?! Não há nem ambiente no exército para isso, menos ainda vontade americana de se envolver em aventuras desse tipo em seu quintal, pois já estão bastante ocupados com seus outros campos de batalha.

     O rapaz estava entusiasmado, seguia seu discurso querendo saber se eu iria me engajar no movimento que ocorreria à tarde, confirmei ausência falando da falta de embasamento legal para qualquer mudança e novamente me assaltou a visão dos grandes espaços de mídia, para o diário anunciar de um novo recorde no valor do dólar, mas em nenhuma notícia encontrei dados sobre a quantidade negociada, o que permitiria ver, sendo essa significativa, um prenúncio de problema, nulas referências à validade no câmbio mundial dessa aproximação do valor do euro, sim me trouxe a nítida sensação de superficialidade orquestrada. 


     Aí está o Boato, ou melhor, uma central de boatos, tentando reproduzir o pré-64, tentando aproveitar o espaço gerado pelas importantes manifestações do ano passado, tentando aproveitar-se de dificuldades óbvias do momento em que anos e anos de corrupção tornam-se visíveis, para construir uma mudança rumo à direita, espalhar boatos sempre foi uma opção de administração da opinião pública e criação de espaço para manifestações populares somados a dissertações escritas, vídeos e tiradas humorísticas nas redes sociais, temos aí então um prato cheio para cruzadas vazias de conteúdo e repletas de golpismo. 

sexta-feira, 13 de março de 2015

O Roubo

      Não me reconheci, ouvi trinta e quatro reais, coloquei uma nota de cem na mão do caixa e recebi setenta e seis, devo ter escutado mal era vinte e quatro, na matemática sou forte tinha recebido dez a mais de troco, que foi fazer companhia às poucas notas que tinha no bolso, quanto à audição, bem! Não sei mais, talvez só escute “o que” e ”o como” que quero ouvir, comecei a fazer malabarismos de raciocínio tipo “esse lanche não vale tudo isso”, “o caixa não iria errar em exatos dez reais”, “a quebra de caixa garante esse pequeno valor”, “a empresa tem isso previsto na conta lucros & perdas”, entre outros.

     Nesse dia tinha saído cedo do escritório, chegando ao shopping logo na entrada me encontrei com minha irmã em um desses cafés sofisticados tão comuns nesses ambientes, não realmente não gosto de centros comerciais fechados, prefiro bares e cafés ao ar livre, claro que nessa preferência encontra-se também a vontade forte de degustar as minhas cigarrilhas, ela me esperava com um pedido já engatilhado de dois cafés, o meu tem que ser duplo é claro, uns pãezinhos de queijo além do bolo de espinafre que ela estava a degustar, sairíamos após o lanche para fazer umas compras no supermercado.

     Saindo em direção ao local das compras passei no caixa para acertar a despesa e vivi o momento acima relatado, me cobraram o valor incorreto, pior foi a menos e com isso me beneficiava, coloquei o troco na carteira e fiquei me convencendo que estava tudo certo, as compras no supermercado eram poucas, mas todo o tempo estive com assunto do acerto, não me saia da cabeça, ao ir embora não resisti e puxei o assunto com minha irmã, indiretamente é claro, comentei o valor referindo-me ao baixo preço, ela de imediato me contestou, levando-me a ter certeza que o valor maior era o correto.

     Como o caixa do café estava em meu caminho de saída, dirigi-me ao mesmo e perguntei-lhe sobre a possibilidade de calcular o valor novamente, conforme relatávamos o consumo ele pesquisava os preços e na calculadora fazia suas contas, estava nervoso, achou um valor diferente próximo do mais alto, não tive duvidas peguei na carteira dez reais e disse “recebi troco a mais estou lhe devolvendo”, satisfeito por ter me redimido, aborrecido por ter tentado trapacear comigo mesmo e tão facilmente predispor-me a ficar com o que não era meu, que por certo iria fazer falta ao caixa.

     Sai convencido que tenho que aumentar a autovigilância, pois percebi que sempre posso manipular os meus pensamentos, maquiando-os para provocar situações favoráveis tão somente a mim mesmo, sendo desonesto comigo e com quem convivo tanto no dia a dia como eventualmente, não existe bom ou mau ladrão existe o roubo e quem o exerceu independente da relevância do valor, de fato importa a disciplina interna de construir relações justas comigo e com os outros.      

quarta-feira, 11 de março de 2015

A Briga.

     A memória me falha às vezes, o ambiente era um salão, algo tipo cadeiras, mesas, bebidas, pessoas, são vários que existem assim e muitos frequento, bem não sei qual o local, essas coisas acontecem muito rápido, percebi como quem tem as famosas intuições que estava sendo observado e o que mais me desagradava, com animosidade, no princípio era apenas uma sensação, eu tentei libertar-me, foi impossível, a sensação de desconforto tomou conta de mim.

     Incrível, mas também não me foi possível saber quem estava comigo, sim estava com alguém, pois não bebo sozinho a não ser lendo em casa, mas recordo bem, o fato é que associei a sensação de mal estar com uns caras, um grandalhão e um baixinho eu os via, é certo que estavam centrados na minha pessoa, mais certo ainda que não fosse um foco amistoso, havia um clima pesado no ar e apontando em minha direção.

     O que refleti e isto sim me vêm à memória de maneira muito viva, “ainda bem que sou grande, apesar de mais gordo do que forte, talvez isso os intimide”, era evidente que eles estavam querendo confusão, estavam claramente tentados a provocar alguém, não sei por que cargas d'água o alvo era eu, que não queria nenhum tipo de complicação, não me lembrava de nada que pudesse ter feito para justificá-la, aparentemente era apenas um caso de “sorteio do bife”, queriam uma briga, randomizaram a escolha de alguém, intimamente encontraram uma desculpa qualquer, e óbvio, eu não tinha a menor ideia porque fora o escolhido e nem mesmo porque tinha entrado nesse sorteio.

      A continuidade era óbvia, tomaram a decisão, e parece que só para tirar um sarro com a minha cara, quem antes mais perto chegou foi o baixinho, metido a invocado que venho logo arrastando cadeiras, buscando com a provocação o motivo final para o imbróglio, voltam-me as imagens, no momento bem refleti não quero brigar aqui, nem agora, nem nunca, porém me parecia inevitável, estava envolvido independente do meu querer, um pensamento rápido me alcançou, deve ter algum segurança por aí para evitar esta coisa desagradável, não brigo nunca, não tenho vontade, nem motivação, não consigo nem ter raiva ou ficar aborrecido com a ignorância dos caras, enquanto pudesse evitar o confronto o faria.

      Acordei, sim era um sonho e isso evitou essa briga idiota, dificilmente recordo os meus sonhos, mas esse despertou comigo, incrustado na memória. Comecei a refletir sobre a violência, sobre a minha decisão de não participação na mesma, sobre a inevitabilidade de certos conflitos, certas guerras, lembrei-me de Gandhi, da resistência passiva, e mais que tudo da consciência perversa do poder que tudo pode e sempre usando a violência, dos mais requintados tipos, impõem suas vontades sem pedir licença em nome apenas do tamanho e força, é hora de despertarmos.       

segunda-feira, 9 de março de 2015

O Novo Homem Criado da Costela da Mulher!

   O Dia Internacional da Mulher, nesse último dia oito de março, que tanto deve sua maioridade à luta capitaneada por Simone de Beauvoir, em oportunidade gerada pelo Cine Bancários, foi-me possível festejar assistindo ao filme "Violette", de Martin Provost, baseado na vida da grande escritora Violette Leduc e da sua mentora e objeto de desejo Simone, o que não me permitiu fugir de pensando na mulher analisar o novo homem que nasce a partir desta mulher emancipada, invertendo o movimento da criação de quando de uma costela de Adão gerou-se Eva, sua companheira.
   
     Essa luta reiterada, travada em todo o século vinte, para construção de uma nova mulher livre das amarras que a sociedade lhe infligiu, avançou muito mesmo me obrigando a concordar e admitir que o feminismo ainda tenha um longo caminho a percorrer, desde já resulta em mudanças no homem, o homem do início do século XXI em nada lembra o do século passado, mesmo se considerarmos as celebridades intelectuais como Sartre, Camus entre outros, a redescoberta da mulher como igual preservando suas diferenças em relação ao homem ajudou-o em seu crescimento.

     Eu particularmente não compartilho com a ideia da adesão masculina ao feminismo, pois aposto em uma luta mais ampla, que busca um ser humano mais completo, independente de sexo ou de outras menos polêmicas características, estou visualizando uma filosofia que aponte como norte para todas as diversidades e que as trate com equivalência e igualdade, respeitando o ser particular que somos cada um, apostando na liberdade de movimentos próprios de um ser pensante e único, possuidor de sua verdade impossível de ser catalogada ou classificada possibilitando por isso mesmo um relacionamento fraterno.

     Muitos afirmam serem minorias as mulheres livres e capazes de conduzir suas próprias vidas, contraponho perguntando, e a respeito dos homens quantos assim o são? Não serão também minorias os aptos a entender e administrar suas vidas, o que sei e tenho convicção é da influência positiva que esta luta da mulher tem no nascimento de um novo homem livre e libertário, pois o obrigou a se repensar.


     Assusta-me muito a facilidade como abrimos mão da luta por nós mesmos, isso vale para todos, talvez o pensamento minoritário esteja criando pessoas mais poderosas por sua obrigatoriedade de lutar, a famosa força gerada no ser humano por sua necessidade de sobreviver, à medida que as batalhas vão sendo ganhas, voltamo-nos para a mesmice, entregando-nos ao completo vegetar, nada contra os vegetais, mas podemos mais.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Duas faces do Western Spaghetti de Leone.

     Entrei na sala de cinema, de imediato a trilha sonora da época foi o meu primeiro bônus, sim ali estava eu em final de fevereiro de 2015, matando saudades, revendo o desmonte do bang-bang tradicional via Sergio Leone, foi para mim uma grande oportunidade, e por certo só poderia ser assim, muito vibrei nas décadas de sessenta e setenta com esse tipo de filme, e consegui ver no intervalo de poucos dias duas visões de pontos extremos do diretor, seu primeiro Western (Punhado de Dólares - 1964) e o último (Quando Explode a Vingança - 1971), valeu time da P. F. Gastal.

     No primeiro nos deparamos com a impressionante matança de pistoleiros por um solitário cavaleiro errante, cercado de inúmeros adversários, com tiroteios espalhafatosos, duelava contra quatro pistoleiros ao mesmo tempo e não deixava por menos, vencia-os sempre zelando pelos quesitos de Herói solitário, mágicas como duelo final com a canhota lhe tinham quebrado a direita e a proteção de aço escondida no peito para baixar a moral do adversário, a paixão que não se realiza prefere deixar a mocinha com o marido e filho depois de resgatá-la dos bandidos, os “malvados” caricatos em sua arrogância com suas poucas luzes contrapondo a inteligência do mocinho portador de uma amoralidade vaidosa e irônica.
    
     No segundo, tudo inicia com uma citação de Mao Tsé-Tung sobre a violência que deve conter uma revolução, o que abre caminho para a sádica agressividade do militar que representa o governo matando milhares de indefesos, com seu sadismo visível nos famosos close-ups do diretor o contraponto dos heróis que se tornam parceiros via aprontadas múltiplas entre si, sem faltar à disputa irônica de vaidades, um no papel de falso inocente representada pelo esperto camponês mexicano e outro um personalíssimo especialista em explosivos egresso do movimento IRA irlandês que provoca grandes matanças via sua especialidade.

     Traição expondo a fraqueza humana, cena em flashback sobre sua ocorrência na Irlanda, enquanto observava a mesma cena no México, defendendo a tese de sua recorrência é um dos pontos altos do filme e novamente vários close-ups, com duas respostas diferentes para o mesmo tema, uma com papel de justiceiro vivido pelo mocinho, outra o mesmo oportunizando ao traidor a redenção na morte em um pretenso ato heroico, sempre explorando muito bem as expressões dos rostos para escancarar os sentimentos dos mocinhos, dos bandidos e dos traidores.


     Entre o primeiro e o último filme de faroeste deste diretor tivemos um período de acontecimentos importantes, o desmonte da União Soviética, a implantação de ditaduras na América Latina por parte dos americanos, maio de 1968 na França e o malogrado destino das revoluções, o que explica a diferença entre os dois filmes, mas sempre com a irreverência do mocinho, a violência praticada pelos bandidos e principalmente a quebra do padrão de comportamento estabelecido para cada um dos papéis no western tradicional, grande Sergio Leone, e hoje tem mais, é dia de Claudia Cardinale em Era uma Vez no Oeste, estarei lá.       

segunda-feira, 2 de março de 2015

Griffith: um Manifesto à Escravidão.

     Polêmico? Só na boa vontade de alguns apaixonados pelo cinema, por problemas de administração de meu tempo pessoal, assisti, mas não consegui participar do debate sábado na sala de cinema P. F. Gastal ao término do filme "O Nascimento de Uma Nação, de D. W. Griffith", mas não vou fugir de manifestar minha opinião. O filme é um primor de catecismo fascista que glorifica o branco ocidental, bestializa o negro africano e ridiculariza os brancos abolicionistas, um verdadeiro manifesto escravocrata a serviço dos poderosos sulistas americanos.

     Não pretendo julgar Griffith e sua obra por um filme, confesso que não conheço toda a sua filmografia, mas sim quero analisar essa obra específica, realmente é uma superprodução para o ano 1915 e localizo muita qualidade, muita arte nas imagens geradas, se bem aprendi com Leonardo Bomfim, no workshop "Primeiro Cinema", todos os recursos utilizados já estavam presentes em obras de Lumière, Méliès e contemporâneos destes menos conhecidos, logo nós não estamos precisamente falando de inovação, o que por certo não lhe tira as qualidades de grande diretor que era Griffith, e sim atesta que essa obra era resultado um forte investimento para defender uma ideia, o racismo, havia muitos recursos entre os poderosos para financiar este monumento à insanidade humana.

     A ideologia fascista presente no filme é tão forte que apela sucessivas vezes para uma pretensa ideia de neutralidade, de só mostrar fatos históricos, transformando a guerra civil americana, conhecida como guerra da secessão, em uma batalha entre negros e brancos. Sabemos, a história nos mostra, que os negros na época não tinham condições mínimas de estabelecer uma guerra, apenas envolveram-se nesta por convocação dos brancos que tinham no norte em fase de industrialização um contraponto ao sul da oligarquia rural.

     Os mocinhos da fita, as duas famílias uma nortista e outra sulista, no filme são a própria imagem da beleza, pureza e perfeição branca, chegam a beirar a impossibilidade as cenas destes personagens com estigmas de exuberante bondade, alegria e vocação para o amor, feitas pelo diretor do filme.
     Os negros e seus amigos brancos são ridicularizados ao extremo para mostrar sua pretensa inferioridade, são feios, perversos, lascivos e traiçoeiros, até a fraude eleitoral quando operada por negros é considerada um ato de violência, porém realizada por brancos apresenta-se como uma intimação justiceira para recolocar as coisas nos eixos, a vitória dos de sempre.


     Não posso aceitar como justificativa a época de 1915 para tanta selvageria, para tanto preconceito, não posso esquecer que a revolução francesa da liberdade, fraternidade e igualdade tinha ocorrido há mais de cem anos, posso sim compreender que nosso Griffith colocou suas belíssimas imagens a serviço do poder econômico rural/feudal nesse momento inicial do capitalismo americano, não que os gestores da nascente indústria pensassem diferente, apenas eles necessitavam mudar o modelo de escravidão para seus novos interesses.