quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O Caminhante, na Pré-História da Organização Social.

     Seu andar nos caminhos do tempo não lhe permitiu evitar sucessivos momentos de convivência com comportamentos sociais baseados em hierarquia de comando o que não lhe exigiu muito esforço de análise para entendê-los como mecanismos cuja inteligência é pré-histórica se examinarmos o quesito formas de organização social e mesmo não se promiscuindo pesou no seu dia a dia essas características do engenho quanto a sua ineficácia em relação aos seus objetivos, quanto a mostrar-se insalubre emocionalmente para os envolvidos refletindo uma barbárie violenta e principalmente por ser um teatro permanente onde cada um dos papeis são representados sem vivência real dos mesmos.

     No contraponto dessa discussão ele avalia as funções colaborativas como um tema fascinante, para falar em rede sem a pretensão de conhecimento específico de biologia reporta-se sempre ao exemplo do corpo humano que funciona com eficiência e eficácia em alto padrão onde todas as células nascem iguais e, na medida em que o todo tem necessidade, cada uma é especializada em uma das muitas funções a serem executadas no conjunto completo, sem a necessidade de hierarquia e comando cada qual fazendo sua função, ele parte então para transpor esse princípio para as estruturas sociais caminho pelo qual imagina conseguir nos sensibilizar para a construção de um modelo justo.

     O sucesso que vemos em exemplos da natureza advém sempre da especialização e nunca do comando estando mais para o conhecimento e exercício de sua natureza do que por obediência a um terceiro, o comando é uma invenção nefasta e cruel do ser humano por desatender os dois lados do jogo o comandante e o comandado, onde o primeiro dedica-se grande parte do seu tempo útil a justificar-se perante si mesmo com fantasmagóricas funções sociais e administração do medo de estar sendo enganado, já o segundo obrigado a viver uma mentira permanente, dedica-se à arte de encontrar reconhecimento fugindo habilmente do trabalho sem perder sua condição de sobrevivência.

     Tendo a sorte lhe sorrido desde sempre pode dedicar-se a um espaço horizontal caminhando sobre o cabo de aço estendido da sociedade industrial de consumo sem cair para o lado da briga de foice no escuro que é a ascensão hierárquica nem desabar para o outro lado da submissão a comandos desnecessários e tinha consciência que esse privilégio lhe foi concedido sem nenhum merecimento próprio originário de um sorteio desconhecido ao qual retribui como caminhante resistente do qual nesse relato seguirá dando testemunho.

domingo, 7 de agosto de 2016

O Caminhante, na Escadaria da Obsolescência.

     Ele conhecia bem os degraus por quais já tinha passado intuía como seriam os que viriam a desafiá-lo no porvir, consciente que carregava consigo esta máquina espetacular física mental na escadaria da obsolescência, a famosa fadiga dos metais é algo do qual o ser humano não está desobrigado a experimentar, é assim que somos destinados a voltar a ser terra neste ciclo orgânico finito romanticamente imaginado como sem fim.

     O que era independia dessas considerações apesar de ignorar completamente a composição e finalidade desta sua parte definidora sabia-o bem que partia dela instigá-lo a medir-se consigo mesmo no tempo, avaliando as mudanças no corpo e na mente com os quais tinha grande parceria, seduzia-o o fato de que cada vez tinha mais tempo para dedicar-se a esse rito, quanto menos qualidade da matéria mais realista apresentava-se a hipótese de descortinar esse eu sou, parecia-lhe que os pensamentos e sentidos do vigoroso corpo o afastavam de desvendar o mistério que era. 

     Velho de corpo e espírito é assim que se definia e se sentia bem com isso, apesar de entender perfeitamente porque preconceituosamente lhe classificavam com frases delicadas tipo da terceira idade ou do melhor tempo ou ainda jovem de espírito, nada mais são que reflexos do estágio da humanidade onde se cultua a juventude como ideal a ser alcançado por seu melhor encaixe na sociedade de consumo que necessita de força e velocidade irrefletida de preferência.

     Como velho reserva-se o direito e obrigação consigo mesmo de relacionamentos livres onde possa conviver com diálogos de terceiros tão somente quando o são similares aos que interiormente pratica, carregados de questionamentos para encontrar descobertas, repletos de incertezas de quem sabe que a verdade é uma utopia a ser aproximada e principalmente isentos do vazio das palavras reproduzidas em série pelos mecanismos de persuasão hoje desenvolvidos.

     Não lhe assusta ser classificado de politicamente incorreto, seu compromisso a cada dia que passa é consigo mesmo, assalta-o a ideia de relações que só aconteçam quando e pelo tempo do desejo dos envolvidos, sem abrir mão de nunca ser indelicado reserva-se a decisão de só falar a ouvidos que querem ouvi-lo e escutar a todos evitando contestá-los apesar de nunca endossar as falsas verdades aquelas que claramente não são consequências do livre pensar do interlocutor e sim uma mecânica reprodução de palavras espalhadas ao vento.    


     O tempo lhe é precioso, dedica-o a considerar-se com atenção e observar os outros em si assim nessa sina de caminhante atinge a vivência do prazer que no fundo é a inspiração que lhe motiva a assumir o que é sabedor que só por ser velho o pode fazê-lo. 

sábado, 6 de agosto de 2016

Reflexos da Natureza Humana Violentada.

     Na Sala Redenção, neste início de agosto, o meu primeiro encontro com a diretora Claire Denis no seu filme Noites sem Dormir (J'ai pas Sommeil, França, 1993, 110 min), posso resumir como gratificante assistir sua reflexão forte sobre o homem migrante. Por sinal, tema de grande atualidade e importância no debate atual global da humanidade, película que não tem a pretensão de oferecer respostas e sim mostrar algumas das diferentes peças que compõe este quebra cabeças de difícil solução, possibilita-nos navegar por caminhos diversos na análise do problema e possível encontro de soluções.

     Os guetos, como consequência resultante da incomunicabilidade, mostram-se distribuídos por todo o filme. Migrantes do leste europeu, migrantes da África, seu isolamento social, suas dificuldades econômicas, sua vida em pequenos grupos e as diversas opções individuais frente à injusta exploração da sociedade, sua vulnerabilidade social, tudo isto nos é jogado na cara de maneira singela real, crua e sem disfarce.

     Nestas ilhas humanas os relacionamentos internos são ambientados no saudável carinho, compartilhando a alegria do convívio através de intermináveis gestos de ajuda mútuos, sempre limitados pela situação econômica a que estão sujeitos, incapazes de abrir seus dilemas pessoais ao grupo. Vivem a solidariedade sem afastarem os fantasmas internos que os amedrontam, vemos então que só há alguma alegria em seus pequenos grupos de mais chegados, todo o entorno social fora destes são relações sombrias com o mundo.

     Um dos protagonistas, o irmão mais velho, negro violinista, dedica-se a montar móveis como trabalhador ilegal para seu sustento, mergulhado na solidão só quebrada pelo dia a dia vivido com o filho pequeno e o contínuo acalento do seu sonho de ir viver na natureza da África uma vida simplória com a mulher, o filho amado, a terra banhada pelo mar e seus frutos que por sinal o separa dos sonhos da mulher branca presa à necessidade da Paris cidade.

     O outro protagonista, seu irmão mais novo, é gay cantor-dançarino de casa noturna focada no público de sua opção de gênero, involuntariamente enquadra-se simultaneamente em diversos guetos: no dos imigrantes, no dos homossexuais, no dos negros, no dos artistas da noite dita marginal e no principal deles, que é o dos pobres. Sua personalidade multifacetada ora é o ser carinhoso da sua relação familiar, ora é o individuo de relação apaixonada e conflitante com o namorado, ora cumpre o papel de amistoso relacionamento com a vizinhança e finalmente o do seu ganha-pão: assassinato em série de velhinhas com finalidade de roubo, o que faz com uma naturalidade impressionante desprovida de qualquer emoção.


     Uma loira jovem bonita, sozinha, vinda da Lituânia para Paris por uma promessa profissional feita na sua terra por um parisiense sedutor do primeiro escalão que agora a adia para um futuro amanhã inexistente, como Judas, ela denuncia para a polícia o jovem e saqueia o dinheiro por ele roubado e segue seu caminho. O filme envolveu-me por inteiro e convida para posterior reflexão mesmo sendo uma situação de difícil entendimento pela dificuldade de nos colocarmos no lugar dos migrantes.